Nas redes sociais, é comum encontrar postagens que equiparam o sionismo ao nazismo, com o objetivo de insultar Israel, acusado de práticas como limpeza étnica em Gaza e de suposta colaboração com os nazistas por meio de acordos como o Haavara. Essa comparação, porém, é válida? Este texto analisa os argumentos apresentados e verifica se há fundamento na equiparação entre sionismo e nazismo, com base no documento fornecido.
O sionismo político, conforme descrito, é a crença na possibilidade de existência e manutenção de um Estado judaico, fundado e mantido por judeus. Essa é a essência do sionismo: a convicção de que um Estado caracteristicamente judaico é viável. Por outro lado, o nazismo tinha como núcleo o antissemitismo, uma ideologia que considerava os judeus uma ameaça existencial à humanidade, especialmente à suposta superioridade da raça ariana. Para avaliar a comparação, é necessário examinar se o pensamento antissemita nazista se alinha com os fundamentos do sionismo.
O antissemitismo era central ao nazismo
O antissemitismo era central ao nazismo. Alfred Rosenberg, um dos principais ideólogos nazistas, desenvolveu a teoria de uma conspiração judaica global, inspirado pelo documento falso Protocolos dos Sábios de Sião. Segundo Rosenberg, os judeus promoviam sua dominação por meio do bolchevismo e do sionismo internacional. Ele acreditava que os judeus não tinham capacidade nem intenção de criar um Estado no sentido europeu, mas usariam um suposto “Estado” judaico para expandir sua exploração: “devido a condição de explorador da cultura ariana, o ‘Estado’ judeu apenas serviria para ampliar a exploração e avançar a dominação do mundo“.[1]
Hitler, influenciado por Rosenberg, adotou uma visão social-darwinista que enfatizava a superioridade da raça ariana, determinada por fatores genéticos: “Em primeiro lugar, o valor inteiro de um povo, que passa de geração em geração como herança e genótipo – valor que só sofre alteração quando o portador dessa herança, o próprio povo, muda em termos de sua composição genética. É certo que os traços individuais de caráter, as virtudes individuais e os vícios individuais sempre se repetem nos povos enquanto sua natureza interior, sua composição genética, não sofre nenhuma mudança essencial“.[2]
Para Hitler, os arianos desenvolveram características altruístas e laboriosas devido às duras condições do Norte: “Podemos ver essa dificuldade no início da pré-história, sobretudo na parte Norte do mundo, naqueles enormes desertos de gelo onde apenas a existência mais escassa era possível. Aqui, os homens foram forçados a lutar por sua existência, por coisas que estavam, no sorridente Sul, disponíveis sem trabalho e em abundância. O Norte forçou os homens a continuarem suas atividades de produção de roupas e construção de residências. Primeiro, eram cavernas simples, depois cabanas e casas. Em suma, ele criou um princípio, o princípio do trabalho“.[3]
Claramente, para Hitler, o ariano desenvolveu uma genética “altruísta“, onde o indivíduo ariano prontamente se sacrificava pela sua coletividade e amava o trabalho pelo trabalho, motivo pelo qual o capacitava para criar uma cultura e fundar e manter Estados. Tal juízo social-darwinista foi igualmente reforçado no infame Mein Kampf.
O ariano se desenvolveu para trabalhar e criar comunidades, cultura e Estados, e o judeu para furtar, enganar e explorar o trabalho e a cultura do ariano.
A antítese
Em contraste, Hitler via os judeus como a antítese dos arianos. Ele acreditava que os judeus, evoluídos em condições diferentes, desenvolveram traços egoístas e parasitários: “O ariano entende o trabalho como a base para a preservação da comunidade do povo, o judeu o vê como um meio de explorar outros povos… Não importa se esse indivíduo judeu é ‘decente’ ou não. Ele traz dentro de si os traços de caráter que a natureza lhe deu, e nunca pode se livrar disso“.[4]
Hitler, claramente, cria uma oposição irreconciliável entre a raça ariana e a judaica porque o que não apenas as separava, mas as colocava numa rota de colisão, eram as respectivas características genéticas de cada uma, desenvolvidas durante milhares de anos e, por isso mesmo, inexpugnáveis. O ariano se desenvolveu para trabalhar e criar comunidades, cultura e Estados, e o judeu para furtar, enganar e explorar o trabalho e a cultura do ariano.
O mito histórico de Hitler, motivado pela ideologia racial, sobre a missão cultural da humanidade ariana encontrou sua complementação no contramito da “missão mundial” judaica. De acordo com as características essenciais atribuídas por Hitler ao judaísmo, essa “missão” da raça judaica, no entanto, não poderia ter um caráter de construção cultural ou formação de Estados, mas apenas um caráter de destruição cultural e de subversão dos Estados.
Para Hitler, portanto, o judaísmo se destacava por uma falta de todas as características que qualificavam a raça ariana para a atividade cultural e a criatividade intelectual: incapacidade de pensar de forma inovadora; interpretação do fenômeno do “trabalho” como uma mera tarefa material para satisfazer necessidades e interesses pessoais; tendência a um estilo de vida “parasitário” às custas de outras nações; — esses eram os traços de caráter preferencialmente citados por Hitler para caracterizar a “contra-raça” judaica.[5]
É uma evolução considerável da mera “conspiração judaica” como percebida por Rosenberg ou outros antissemitas vulgares, mas uma visão histórica dualista na qual o “bem” e o “mal” encontravam-se perfeitamente delineados nas duas raças antitéticas em conflito. O arianismo e o judaísmo estavam interligados de forma complementar, assim como ação e reação, tese e antítese, formando um curso histórico que obteve “sua verdadeira dinâmica por meio da relação dialética entre dois princípios mundiais antagonistas [arianismo x judaísmo]”, cuja resolução se daria apenas com a “indubitável aniquilação do envenenador povo judeu“.[6]
O pensamento antissemita de Hitler alcançou seu ápice numa interpretação histórica na qual as duas raças antitéticas estavam em rota de colisão inevitável. De um lado, os arianos, a raça criadora da cultura, da civilização e mantenedora do Estado; do outro, os judeus, os exploradores egoístas que dependiam da espoliação dos bens culturais arianos para sobreviverem. O desenlace desse embate apocalíptico decidiria o destino da civilização humana: caso os arianos perdessem, a civilização e a cultura estariam perdidas.
Incompatíveis
Agora, tendo em mente a base do radical, social-darwinista e histórico antissemitismo de Hitler, pode-se dizer que os fundamentos do Sionismo e do Nazismo são compatíveis? Obviamente: não. Para ser sionista, é preciso acreditar que a criação e a manutenção de um Estado judeu sejam possíveis; o antissemitismo de Hitler, por outro lado, baseava-se justamente na incapacidade da “raça judaica” de fundar e manter seu próprio Estado, por isso era caracterizada de “parasita”. Como é possível, portanto, ser sionista sem acreditar na principal ideia que o fundamenta? Simplesmente não é possível.
Agora, por que o regime nazi acertou acordos de transferência de judeus, como o de Haavara, para alhures no mundo, como Madagascar e Palestina, se o objetivo era a sua eliminação por serem os inimigos históricos de Hitler? É por um motivo óbvio e que escapa a todos os criadores de opinião: a expulsão dos judeus e o seu reassentamento fora da Europa seria, para Hitler e os nazistas, uma sentença de morte.
A lógica é clara: se os judeus são, como Hitler afirmava, parasitas que necessitavam parasitar os arianos para sobreviverem, mandá-los para longe do hospedeiro ariano resultaria na morte do parasita. Como a raça judaica, para Hitler, era incapaz de fundar e manter seu próprio Estado, o reassentamento dela alhures no mundo significava uma morte lenta por autofagismo e, de fato, Hitler utilizou a analogia da raça judaica como ratos que se autodestruíram.[7]
Haavara
Tratados de transferência como o de Haavara, portanto, não são provas de que o regime nazista desejava o reassentamento dos judeus na Palestina para a criação de um Estado judeu como o de Israel, mas justamente o contrário: eles acreditavam que os judeus, expulsos da Europa e longe do hospedeiro ariano, se autodestruiriam devido à sua natureza egoísta, individualista e parasitária. Seja por expulsão e reassentamento, seja por liquidação física direta, o regime nazista tencionava a destruição dos judeus.
Portanto, mesmo que seja possível argumentar que o que Israel está fazendo em Gaza seja um “genocídio” ou uma “limpeza étnica”, a acusação de ser análogo ao nazismo não se sustenta, porque o regime nazista não foi o único a praticar genocídio e limpeza étnica. Se fosse esse o critério, a analogia com outros regimes genocidas e racistas seria mais adequada, já que o nazismo se fundava numa recusa absoluta da mera possibilidade de fundação, manutenção e existência de um Estado judeu.
[1] Francis R. Nicosia. The Third Reich and the Palestine Question. Austin, University of Texas Press 1985. p. 24.
[2] Adolf Hitler. Reden. Schriften. Anordnungen. Februar 1925 bis Januar 1933. Band IV. Von der Reichstagswahl bis Zur Reichspräsidentenwahl Oktober 1930 — März 1932. München, K. G. Saur, 1997, p. 76–77.
[3] Adolf Hitler. Warum sind wir Antisemiten?, em Hitler: Sämtliche Aufzeichnungen, 1905–1925. Stuttgart, Deutsches Verlag-Anstalt, 1980, p. 184–185.
[4] [4] Adolf Hitler. Die Hetzer der Wahrheit, em Redens. München, Deutscher Volksverlag, 1933, p. 18–19.
[5] Frank-Lothar Kroll. Utopie als ideologie Geschichtdenken und politisches Handeln im Dritten Reich. München, Ferdinand Schöningh, 1998, p. 50.
[6] [6] Ibid., p. 53.
[7] Ian Kershaw. Hitler. São Paulo, Companhia das Letras, 2010. p. 485-486.