Nos últimos meses, lideranças europeias intensificaram o discurso e os planos de ampliar significativamente os gastos com defesa e a produção de armas no continente — em resposta direta às crescentes tensões com a Rússia, à aparente reorientação dos EUA na OTAN e às lições duras extraídas do apoio à Ucrânia. Entretanto, essa ambição esbarra em questões complexas: orçamentárias, estruturais, políticas e industriais.
Entre 2021 e 2024, os gastos militares dos países da União Europeia cresceram em mais de 30%, passando de €214 bilhões para aproximadamente €326 bilhões — quase 1,9% do PIB do bloco, com previsão de ultrapassar os 2,0% em 2025. Parte significativa desse montante (30%) foi direcionada para investimento em equipamentos, avaliados em cerca de €102 bilhões em 2024. O crescimento é especialmente expressivo em alguns países: a Bélgica planeja elevar os gastos para 2% do PIB até meados de 2025; a Dinamarca passou de 2,4% para 3,0%; enquanto a França estendeu seu orçamento militar de €295 bilhões para €413 bilhões entre 2019 e 2025.
Readiness 2030
Adicionalmente ao empenho nacional, foi lançado o programa “Readiness 2030” (antigo “ReArm Europe”), que soma até €800 bilhões em potencial mobilização de recursos — incluindo flexibilidade no pacto de estabilidade, empréstimos de até €150 bilhões do EIB, realocações de fundos estruturais da UE e incentivos à participação privada. O programa atende a uma convergência de percepções geopolíticas. A invasão da Ucrânia e a crescente militarização russa — que consome cerca de 7% do PIB — evidenciam a necessidade de capacidades modernas.
O temor de que os EUA reduzam seu envolvimento na OTAN, especialmente sob futuras administrações menos comprometidas com alianças multilaterais, intensifica o senso de urgência. A proposta do premiê holandês Mark Rutte de elevar os gastos totais para 5% do PIB, sendo 3,5% militares e 1,5% destinados a infraestrutura logística dual-use, sintetiza essa visão de maior autonomia e prontidão.
Ineficiências
A dificuldade de fornecer munição, drones e artilharia à Ucrânia mostrou que a capacidade industrial europeia é insuficiente e fragmentada.
A UE possui cerca de 4.000 empresas de defesa, muitas pequenas, com pouca coordenação entre si. Países usam dezenas de plataformas diferentes — a Europa conta com 178 sistemas principais contra cerca de 30 nos EUA. Isso gera ineficiências, altos custos de manutenção e limitações na interoperabilidade.
A dependência de matérias-primas críticas e tecnologias como chips e estabilizadores expõe a Europa a riscos externos. A indústria depende de componentes importados — ainda mais em momentos de escassez mundial. Os sistemas europeus de defesa têm baixas cadências de produção — muitos programas operam no nível de dezenas de unidades, onde os EUA produzem centenas. Sem compromissos duradouros e previsíveis, com ordens de compra que se estendam até 2030 ou além, será quase impossível convencer o setor privado a expandir sua capacidade produtiva de forma robusta.
Muitos países, como Itália e Espanha, enfrentam pressões fiscais e dificuldades em aumentar o orçamento de defesa sem comprometer investimentos sociais e estabilidade macroeconômica. A Alemanha, por sua vez, criou um fundo extraordinário de €100 bilhões para modernizar suas Forças Armadas, mas seu uso tem prazo limitado e enfrenta entraves burocráticos. O governo e o setor europeu, contudo, vêm adotando medidas simultâneas para superar essas barreiras.
A Estratégia Industrial de Defesa Europeia (EDIS) prevê apoio a joint ventures em grandes plataformas, padronização de sistemas e até uma espécie de “Foreign Military Sales” europeu. O Programa Industrial de Defesa (EDIP) oferece €1,5 bilhão em subvenções até 2027. Entre 2021 e 2027, o Fundo Europeu de Defesa (EDF) destina €8 bilhões para pesquisas e desenvolvimento de tecnologias militares — metade a projetos colaborativos e metade à pesquisa estratégica.
A proposta Readiness 2030 busca flexibilizar regras de déficit, criar novos mecanismos de financiamento, redirecionar fundos estruturais e envolver capital privado em um esforço amplo de fomento industrial. Países como França, Alemanha, Polônia e Finlândia já anunciaram orçamentos significativamente maiores. A França prevê um aumento de 39% nos investimentos entre 2019 e 2025. A Polônia investe até 4,7% do PIB em defesa, enquanto Finlândia e Suécia aceleram seus planos de modernização com foco em interoperabilidade com a OTAN. Investimentos em infraestrutura são priorizados, com cerca de €75 bilhões dedicados à modernização de portos, estradas e redes ferroviárias adaptadas a exigências militares. A mobilidade militar é hoje vista como fator essencial para a dissuasão rápida e eficiente diante de uma ameaça.
Divergências políticas internas
Os próximos passos, contudo, esbarram em divergências políticas internas. Cada país possui sua própria política de defesa — como a Espanha, que rejeita a meta de 5% do PIB e prioriza políticas sociais. Muitos alertam que a austeridade fiscal colocará freios no entusiasmo, e dívidas públicas elevadas de países como França e Itália limitam sua capacidade de absorver gastos crescentes. Há ainda a resistência de indústrias nacionais em abrir mão de mercados protegidos e se integrar em grandes consórcios multinacionais, o que dificulta a consolidação do setor. Mesmo com investimentos crescentes, construir sistemas integrados e interoperáveis para todos os exércitos da UE levará tempo, esforço político e técnico.
Caso bem-sucedida, a estratégia europeia trará múltiplos reflexos positivos. A Europa poderá reduzir sua dependência de materiais e tecnologia estrangeira, criando autonomia em setores como mísseis, drones, radares e satélites. Com orçamentos ampliados, o continente poderá atrair investimentos em áreas de dupla utilização (civil-militar), como inteligência artificial, cibersegurança e comunicações quânticas. A modernização da infraestrutura logística dual-use também permitirá respostas mais rápidas a crises regionais e reduzirá os gargalos em caso de conflito armado.
O impulson da inovação tecnológica de defesa
A indústria de defesa europeia já emprega mais de 580 mil pessoas, número que tende a crescer com os novos projetos. A inovação tecnológica impulsionada pela defesa também impactará setores civis, como transporte, energia e comunicações. Em paralelo, o fortalecimento da capacidade de defesa reforça o papel geopolítico da UE em um mundo multipolar.
Contudo, tudo dependerá da execução prática. A fragmentação persistente, as restrições orçamentárias e a hesitação política podem comprometer o objetivo de construir uma defesa europeia robusta até 2030. O destino da estratégia militar continental pode estar definido nos próximos anos. Em um cenário de reconfiguração das alianças globais e instabilidade crescente no entorno europeu, a decisão de investir em defesa pode não ser apenas uma escolha estratégica — mas uma necessidade existencial.