Na primeira parte do artigo, publicada ontem, além de contextualizar o atual conflito entre Israel e Palestina dentro de ciclos de violência recentes, esmiuçamos os motivos pelos quais o Estado de Israel falhou miseravelmente em evitar o maior massacre de judeus desde o holocausto.
Nesta segunda e última parte, iremos abordar os impactos e as lições (a serem) aprendidas pela Comunidade de Inteligência (IC) israelense, sob a ótica de um dos maiores acadêmicos do mundo nessa área – e ex-oficial do Shin Bet – Avner Barnea.
O impacto da inteligência de fontes abertas (OSINT)
A Inteligência de fontes abertas (OSINT, na sigla em inglês) refere-se à coleta e análise de informações obtidas de fontes publicamente disponíveis. Por exemplo: mapas, transmissão da mídia, postagens em mídias sociais, registros oficiais públicos, etc. O ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 demonstrou a importância da OSINT na guerra moderna, utilizando-a de forma eficaz para:
- Mapear alvos israelenses: O Hamas coletou informações detalhadas sobre comunidades israelenses perto da Faixa de Gaza, incluindo mapas, imagens de satélite e dados de redes sociais. Essas informações permitiram que o grupo identificasse pontos vulneráveis na fronteira, planejasse suas rotas de infiltração e escolhesse alvos estratégicos para seus ataques.
- Identificar vulnerabilidades: O Hamas explorou transmissões da mídia israelense, que frequentemente fornecem informações detalhadas sobre operações militares, exercícios e sistemas de defesa. A cobertura midiática, muitas vezes motivada pelo desejo de informar o público e mostrar a força militar de Israel, acabou fornecendo informações valiosas para o Hamas.
- Disseminar propaganda: O grupo criou perfis falsos em plataformas como Facebook, X e Instagram, e utilizou esses perfis para compartilhar vídeos de seus ataques, glorificar seus combatentes e difundir mensagens de ódio contra Israel. O uso das redes sociais permitiu que o Hamas ampliasse o alcance de sua propaganda, atingindo um público global e influenciando a opinião pública internacional.
As lições (a serem) aprendidas
O “7 de outubro” expôs uma série de falhas nas capacidades de inteligência de Israel, que podem servir como lições valiosas não apenas para o país, mas também para outras nações que enfrentam ameaças semelhantes. As principais lições aprendidas com esse evento incluem:
- Dependência excessiva de SIGINT: A IC israelense se tornou excessivamente dependente de SIGINT, negligenciando outras fontes de inteligência, como OSINT e HUMINT. Essa dependência deixou Israel vulnerável a ataques planejados para evitar a detecção eletrônica, como foi o caso em 2023. A ênfase em SIGINT, que se mostrou eficaz em conflitos anteriores, levou a um desinvestimento em outras áreas da inteligência, como o desenvolvimento de fontes HUMINT e a análise de OSINT.
SIGINT significa Signals Intelligence (Inteligência de Sinais) e refere-se à coleta de informações a partir da interceptação e análise de sinais eletrônicos, como comunicações de rádio, transmissões de radar e sinais de satélite.
A HUMINT, ou Inteligência Humana, é a coleta de informações por meio de fontes humanas, como espiões, informantes e interrogatórios.
- Negligência de OSINT: A IC israelense não deu a devida atenção ao OSINT, subestimando a quantidade de informações valiosas que podem ser coletadas de fontes abertas. Essa negligência permitiu que o Hamas explorasse as informações disponíveis publicamente para planejar seu ataque. A falta de investimento em ferramentas e expertise em OSINT deixou Israel cego para as atividades do Hamas na internet e nas redes sociais, onde o grupo planejou e divulgou seu ataque.
- Falta de HUMINT: A falta de fontes HUMINT confiáveis dentro do Hamas privou a IC israelense de informações cruciais sobre as intenções do grupo. Essa lacuna de inteligência impediu Israel de detectar os preparativos para o ataque e tomar medidas preventivas. A dificuldade em recrutar e operar agentes dentro da Faixa de Gaza, controlada pelo Hamas, deixou Israel dependente de outras fontes de inteligência, que se mostraram insuficientes para prever o ataque.
- Dificuldades na cooperação interagencial: A falta de cooperação eficaz entre o IMI (Inteligência Militar Israelense) e a ISA (Agência de Segurança Israelense – Shin Bet), evidenciada no relatório do Controlador do Estado (explicado na 1ª parte), demonstra a necessidade de aprimorar a comunicação e o compartilhamento de informações entre as agências de inteligência israelenses. A rivalidade interagencial, a falta de confiança e a compartimentalização de informações impediram que as diferentes agências trabalhassem em conjunto de forma eficiente, o que resultou em uma falha em conectar os pontos e identificar a ameaça iminente.
- Necessidade de diversificação de fontes e tecnologias: A falha de inteligência em 2023 demonstra a necessidade de Israel diversificar suas fontes de inteligência e explorar novas tecnologias, como Inteligência Artificial e análise de big data, para aprimorar suas capacidades de análise e previsão. O ataque do Hamas demonstrou que a dependência excessiva em uma única fonte de inteligência pode ser perigosa, e que é crucial desenvolver uma abordagem multifacetada para a coleta e análise de informações.
- Lições da Guerra do Yom Kippur: O ataque do Hamas é um lembrete de que as falhas de inteligência podem ter consequências devastadoras e que o aprendizado constante e a adaptação são cruciais para a segurança nacional de Israel. A Guerra do Yom Kippur em 1973, um conflito traumático para Israel, levou a uma série de reformas no sistema de inteligência do país; mas o ataque do Hamas, 50 anos depois, demonstrou que ainda há muito a ser feito para garantir que Israel esteja preparado para enfrentar as ameaças do século XXI.
- Alerta do Ministro da Inteligência Egípcia: A desconsideração do alerta do Ministro da Inteligência Egípcia, Abbas Kamel, sobre um possível ataque do Hamas, demonstra falhas na comunicação e coordenação entre Israel e seus aliados, além de destacar a importância de levar a sério os avisos de fontes confiáveis, mesmo quando a atenção está voltada para outras ameaças.
A influência da dimensão humana
Deixei para o final uma lição fundamental a ser aprendida pela IC israelense: a influência da dimensão humana. É crucial reconhecer a influência de vieses cognitivos, como o wishful thinking e a tendência à confirmação, na interpretação de informações pelos analistas.
“Vocês têm olhos, mas não têm cérebro”
Já ficou bastante claro ao longo de todo o artigo que tanto os oficiais de inteligência quanto os decisores políticos falharam em suas atribuições. Os primeiros em desconsiderar as informações coletadas por seus agentes, os segundos em negligenciar uma potencial ameaça ao Estado de Israel. E a dimensão humana faz parte disso.
Quando agentes de campo relataram a seu superior sobre a iminência de um ataque do Hamas, aconteceu uma cena absurda. Com todos os membros daquela divisão de inteligência reunidos, o superior não apenas negligenciou o relatório recebido, como também pôs em causa a capacidade das agentes, apenas por serem… mulheres!
“Vocês têm olhos, mas não têm cérebro”, disse o oficial sênior de inteligência, em referência a uma suposta tendência histérica das mulheres.
Preconcepções equivocadas são apenas indesejáveis quando limitadas ao convívio social, podendo ser delituosas em um contexto profissional, mas, quando se trata de atividades críticas – como a da Segurança Nacional – elas podem ser fatais. O 7 de outubro de 2023 foi uma prova disso.
Por outro lado, o desenvolvimento de protocolos mais rigorosos, a promoção da diversidade de pensamento dentro das agências de inteligência e a criação de mecanismos para desafiar as suposições e crenças preconcebidas podem ajudar a mitigar esses vieses e aprimorar a qualidade da análise de inteligência.
Conclusão
O ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 foi uma surpresa estratégica e tática para Israel, expondo falhas significativas nas capacidades de inteligência do país. O ataque demonstrou que o Hamas, um grupo que durante muito tempo foi subestimado por Israel, evoluiu para uma organização militar sofisticada, capaz de planejar e executar uma operação complexa em larga escala, explorando as vulnerabilidades de Israel e enganando sua IC.
A subestimação do Hamas como um ator “terrorista” e a superestimação das capacidades defensivas de Israel contribuíram para a falha de inteligência. Havia uma falsa sensação de segurança que impediu que o país se preparasse adequadamente para uma ameaça real.
É necessário que Israel reforme e aprimore suas práticas de inteligência para enfrentar as ameaças em constante evolução . As lições aprendidas com esse evento devem servir como um guia para Israel e outras nações que buscam fortalecer suas capacidades de inteligência e evitar surpresas estratégicas devastadoras.
Baseado no artigo “Israeli Intelligence Was Caught Off Guard: The Hamas Attack on 7 October 2023—A Preliminary Analysis”, de Avner Barnea, publicado no International Journal of Intelligence and CounterIntelligence.
Avner Barnea é pesquisador do National Security Studies Center, Universidade de Haifa. Ele foi oficial da Agência de Segurança de Israel (Shin Bet).
Leia a primeira parte do artigo: Como o Hamas colocou Israel para “dormir” no 7 de outubro – Danuzio