Baixa popularidade, sucessivas derrotas no Congresso e erosão da base de apoio escancaram crise
O dia 25 de junho de 2025 foi um dia atípico na democracia brasileira. Pela primeira vez em 33 anos, um decreto presidencial foi derrubado pelo Congresso Nacional. O aumento de alíquotas do IOF feito por Lula foi rechaçado na Câmara dos Deputados, por meio de um projeto de decreto legislativo (PDL) com 383 votos favoráveis e 98 contrários. Logo em seguida, o Senado também aprovou a medida, em votação simbólica. A última vez que isso havia acontecido foi ainda no governo Collor em março de 1992, e seis meses depois, o cenário político instável levou ao início do processo de impeachment de Fernando Collor.
Mais do que uma nova derrota do governo Lula no parlamento, o processo político que levou a esse resultado carrega um simbolismo maior, com vários sinais de que a já combalida base do governo se esfacelou, passou a ser uma peça de ficção. Restam apenas os partidos mais à esquerda votando fielmente com o governo: PSOL, Rede, PCdoB, PV e o próprio PT. Ou seja, a base verdadeiramente fiel do governo na Câmara dos Deputados é de 5 partidos com apenas 93 deputados no total, menos de um quinto dos 513 deputados federais.
Direita e Centro
A direita votou em peso contra o aumento de tributos, assim como os partidos de centro que comporiam a base do governo e que possuem ministérios na Esplanada (MDB, PDT, PP, PSB, PSD, Republicanos e União Brasil). Até mesmo o PDT e o PSB, mais inclinados à esquerda, votaram majoritariamente para derrubar o decreto presidencial.
A derrota de Lula começou com uma publicação do Presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) na rede social X. Às 11h35 da noite da terça-feira (24), Motta anunciou que a votação sobre o IOF estava pautada para dali a poucas horas, no dia seguinte. O governo foi pego de surpresa. E a relatoria ficou com a oposição (Coronel Chrisóstomo, do PL-RO).
Publicamente, parlamentares têm dito que não há espaço para mais impostos ou tributos no país, apesar de terem aprovado o aumento do número de deputados no mesmo dia, mas também pesa a relação desgastada com o governo. Há descontentamento com a demora na execução de emendas parlamentares e com decisões da equipe econômica do ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT).
Outra fonte de insatisfação é a Ação Direta de Inconstitucionalidade que apura a falta de transparência e de rastreabilidade nas emendas parlamentares, que transita no STF (Supremo Tribunal Federal), sob a relatoria do ministro Flávio Dino. As decisões de Dino têm gerado atrito com o Congresso. Em dezembro de 2024, por exemplo, Dino suspendeu o pagamento de R$4,2 bilhões do orçamento da União em emendas, até que cumprissem os requisitos de transparência. E somente dois meses depois, Dino finalmente homologou um plano de trabalho apresentado pelo Congresso, liberando as emendas. Como o ministro foi indicado por Lula, os parlamentares avaliam que o governo deveria intervir para evitar os atritos.
Tensão entre Congresso e STF
Após a histórica derrota do IOF sofrida pelo governo, tanto o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), quanto o presidente da Câmara, Hugo Motta, comparecerão pessoalmente ao STF nesta sexta-feira (27), para uma audiência marcada pelo ministro Flávio Dino no curso do processo sobre as emendas parlamentares. E já chegarão com mais um conflito instaurado.
Lideranças do PT defendem acionar o STF para questionar a atuação do Congresso Nacional. Técnicos da AGU (Advocacia-Geral da União) avaliam que a derrubada do decreto poderia ser inconstitucional. O art. 49 da Constituição Federal define as competências exclusivas do Congresso Nacional, dentre as quais “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa” (inciso V). A teoria é que, apesar de impopular, o decreto presidencial não teria extrapolado o poder regulamentar do Executivo. Na prática, bem se sabe que o intuito do decreto não é meramente regulatório, mas sim arrecadatório. Toda a equipe econômica do governo fala da sua necessidade para diminuir o rombo das contas públicas.
Essa pode ser uma saída técnica para o governo impor o aumento do IOF, mas antes mesmo de qualquer apreciação pelo Judiciário, já está criando repercussões políticas. A judicialização seria uma verdadeira declaração de guerra entre governo e Congresso, segundo aliados do presidente da Câmara, Hugo Motta. Levar o caso ao STF significaria tentar acuar o Legislativo, apostando no questionável ativismo judicial, quando o Judiciário age de forma mais intervencionista sobre as competências dos demais Poderes.
Responsabilidade fiscal deteriorada
Percebem-se muitas falhas do governo mesmo antes da tentativa frustrada de aumentar o IOF. A responsabilidade fiscal está sendo consistentemente deteriorada. Há uma insistência em equilibrar as contas públicas aumentando a receita, em vez de cortar despesas. E a única forma de o governo aumentar a receita de forma constante é aumentando a carga tributária, daí ter surgido a ideia de aumento do IOF.
Não à toa, o Brasil registrou a maior carga tributária dos últimos 15 anos: 32,3% em 2024. O brasileiro trabalha quase quatro meses em um ano apenas para pagar tributos. Em 2020, havia sido registrado a menor carga tributária dos últimos 15 anos, de 29,02%, ainda no governo Bolsonaro. Os dados são do Ministério da Fazenda.
Mais impostos se traduzem em mais inflação, o que força o Banco Central a aumentar os juros (taxa Selic), que freiam o crescimento econômico desejado pelo governo. Assim, governo e Banco Central estão trabalhando um contra o outro, em um ciclo vicioso. E a população colhe os resultados negativos: inflação alta com queda da atividade econômica. Isso significa menos poder de compra e oportunidades para os brasileiros.
Impedido de aumentar a tributação e sem querer cortar despesas, as contas públicas estão no vermelho. A dívida pública subiu 12,2% apenas em 2024, superando R$7,3 trilhões. A Instituição Fiscal Independente (IFI) alertou que precisaria haver um contigenciamento de R$75,9 bilhões já no ano que vem, para que o governo possa cumprir o arcabouço fiscal. Na prática, isso é inviável, pois a despesa discricionária (gastos livres) ficaria abaixo do mínimo necessário para o funcionamento da máquina pública. Em outras palavras, não haverá recursos para o Estado funcionar, uma verdadeira falência pública.
O fracasso do arcabouço fiscal
Tudo isso significa o fracasso do arcabouço fiscal desenhado por Lula no início do seu governo. Fernando Haddad, ministro da Fazenda, e Simone Tebet, ministra do Planejamento e Orçamento, até ensaiaram fazer cortes mais ousados algumas vezes, para equilibrar o orçamento. As medidas, no entanto, ou sofreram ataques dentro do próprio governo, ou foram desidratadas, ou traziam previsões irreais de economia/arrecadação que não surtiram o efeito esperado. Chegou-se ao atual nível de desespero por recursos que não se sabe de onde tirar. Constata-se o fracasso da política fiscal, já se falando que é inevitável o governo rever a meta de superávit de 0,25% no ano que vem, passando a registrar mais um déficit.
Segundo a ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann (PT-PR), a falta de recursos vai prejudicar programas sociais e investimentos, afetando também a execução de emendas parlamentares. Assim, abre-se mais uma frente de atrito com o Congresso, com o indicativo de que suas emendas serão impactadas, mas o governo padece da doença que ele mesmo criou, a má gestão pública e falta de articulação política. O Brasil já possui uma das maiores cargas tributárias do mundo, e a solução não pode ser aumentar mais os impostos, inchando o Estado já inchado.
A população percebe a ruína administrativa. Após o escândalo de descontos ilegais em benefícios do INSS, a corrupção voltou a ser vista como o principal problema do país, segundo pesquisa da AtlasIntel/Bloomberg de 30 de maio deste ano. De fato, a corrupção é um dos fatores para a ineficiência no gasto dos recursos públicos. Depois dela, foram apontadas a criminalidade/tráfico de drogas e a economia/inflação. Sem perspectiva de melhoras, a popularidade do governo está em baixa, e Lula já perde ou empata com vários nomes da direita em pesquisas eleitorais para as eleições de 2026.
No segundo semestre deste ano, a situação do governo federal deve se complicar, conforme as investigações da CPMI do INSS avancem no escrutínio público. Após tentar barrar a criação da CPMI e sofrer mais uma derrota, o governo deve ver a relatoria da CPMI ficar com o centrão. Seguramente, a CPMI vai afetar ainda mais a percepção do povo sobre a corrupção.
Debandada da classe política
E, como a política depende de votos, a classe política já percebeu o ambiente das ruas. A base governista fica cada vez mais infiel, mesmo nos partidos com ministério. O ponto alto das traições foi a derrota do IOF, mas a política é dinâmica. Tudo indica que as traições continuarão, principalmente com a aproximação das eleições de 2026. Em mais um sinal de erosão da base de apoio, Solidariedade e PRD anunciaram a criação de uma federação na terça-feira (24). E devem apoiar a candidatura de Ronaldo Caiado (União Brasil-GO) à presidência da República no ano que vem, saindo da base do governo definitivamente.
O Solidariedade foi uma das agremiações políticas que compôs a chamada frente ampla de Lula nas eleições de 2022 e possui cargos no governo federal, apesar de não comandar ministério. Junto com o PRD, possuem 10 deputados federais e 1 governador (Amapá), que já vão desfalcar ainda mais a base governista.
Também é quase certo que Republicanos, PP, União Brasil e PSD desembarquem do governo, entregando seus ministérios em algum momento até o começo do próximo ano. O Republicanos abriga Tarcísio de Freitas, um dos maiores cotados para disputar com Lula a presidência da República. PP, União e PSD têm mais a ganhar ficando distantes de um governo impopular, para que consigam manter ou aumentar suas grandes bancadas no parlamento. Já o MDB tende a se dividir, uma parte mantendo-se fiel a Lula, principalmente no Nordeste, enquanto outra parte é oposição, como o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes.
Assim, vai sendo criado um clima de ingovernabilidade em Brasília. O governo carece de uma articulação política capaz de dialogar com o Congresso e conseguir aprovações importantes. Também não acerta o tom de sua comunicação, com a aprovação do governo em baixa e a volta da corrupção como maior preocupação popular. A certeza é que falta dinheiro no Brasil. O povo sente que a inflação impede de comprar as mesmas coisas que se comprava antes, enquanto os parlamentares sentem as emendas que não são liberadas por falta de recursos. Cada um à sua maneira, mas todos sentem que algo precisa ser feito.
Com informações de: CNN, CNN, G1, JP News, O Globo