Foi no final do século XIX que o ilustre jurista Ruy Barbosa defendeu uma de suas mais notáveis teses. Arguindo no Supremo Tribunal Federal, Barbosa conseguiu a absolvição do juiz gaúcho Alcides de Mendonça Lima da acusação de prevaricação. Lima era acusado de proceder contra a literal disposição da lei — e de fato o havia feito.
Na época, os estados tinham seus próprios códigos processuais, e o Rio Grande do Sul havia editado o seu para que o tribunal do júri, entre outras coisas, passasse do voto secreto para o aberto. Lima declarou a mudança inconstitucional e presidiu um júri no formato antigo. No STF, o jurista baiano defendeu que nenhum juiz poderia ser alvo de ação penal por exercer sua jurisdição. Desde então, passou-se a considerar um absurdo a persecução de um magistrado por mera discordância de entendimento jurídico. De fato, em 2019, quando ministros do Supremo foram alvos de processos de impeachment por terem criado o crime de transfobia — fazendo uma analogia em prejuízo do réu, ao equiparar racismo à transfobia e romper com a doutrina vigente de que não existe crime sem lei anterior que o defina —, algo até então inédito no direito brasileiro, o então presidente Dias Toffoli e o ministro decano e também um dos alvos do processo, Celso de Mello, interromperam a sessão para se defender, citando justamente Ruy Barbosa.
Um dos alvos do pedido de impeachment foi o ministro Alexandre de Moraes, que, apesar de ter se protegido sob o manto de Ruy Barbosa para criar um crime por analogia, não pensou duas vezes em mandar investigar juízes que deram decisões que contrariavam as suas.
Em 2024, o juiz federal José Jácomo Gimenes, da comarca de Maringá, deu ganho de causa ao ex-deputado estadual Homero Marchese. A condenação de R$ 20 mil imposta à União despertou a fúria de Moraes. Gimenes reconheceu que, ao não justificar o bloqueio das redes sociais de Marchese e não desbloquear seu Instagram por meses — mesmo quando suas outras redes já haviam sido desbloqueadas —, a União havia incorrido em dano contra o ex-deputado. Avisado pela Advocacia-Geral da União do resultado do julgamento, Moraes cassou a decisão do juiz federal e ordenou que o Conselho Nacional de Justiça investigasse o magistrado. No final do ano, o CNJ arquivou a investigação, mas o recado era claro: discordar de Moraes pode custar caro — como está descobrindo o juiz Lourenço Migliorini Fonseca Ribeiro, da Vara de Execuções Penais de Uberlândia (MG).
Na última semana, Lourenço recebeu um pedido de progressão de pena como tantos outros que chegam à vara. Nas Varas de Execução Penal, o espaço discricionário do juiz costuma ser menor do que em outras áreas da Justiça. A construção jurisprudencial do direito brasileiro faz com que, se as condições para progressão ou benefício estiverem sendo cumpridas, não haja muita escolha sobre o que fazer. De tal forma que, por exemplo, se um apenado tiver “direito” a progredir para o regime semiaberto e não houver estabelecimentos prisionais adequados ou sequer tornozeleira eletrônica, ele deve ser simplesmente solto — veja como essa decisão do STF foi celebrada à época.
É provável que, ao receber o pedido de Antônio Alves Cláudio Ferreira, o juiz Lourenço sequer tenha associado o nome à figura. E fez muito bem. Afinal, aprende-se nas aulas de Direito que processos não devem ter capa. Se Antônio é o homem que se tornou nacionalmente conhecido por quebrar um relógio durante o 8 de Janeiro, isso é irrelevante para seu pedido. O que importa é se os requisitos para progressão existem. Se existem, ela deve ser concedida. É isso que se aprende nas aulas de Direito. É isso que repetidas decisões de tribunais superiores determinam. Mas é justamente esse entendimento que fez Moraes abrir uma investigação contra o juiz Lourenço.
É natural que Moraes discorde de outros juízes. É natural até que ele reforme suas decisões. Mas é completamente inédito, mesmo para o Direito brasileiro, que um ministro do Supremo Tribunal Federal (ou de qualquer outro tribunal) acumule no mesmo processo os cargos de presidente do inquérito, relator, vítima, denunciante e, agora, corregedor de tribunais Brasil afora. O arbítrio não se encerra na abertura de um procedimento por “crime de hermenêutic“, mas se estende até Moraes declarar que a conduta do juiz deve ser apurada pelo próprio STF. Ao que tudo indica, o ministro quer garantir que o caso não termine em arquivamento, como ocorreu com o juiz anterior.
Usualmente vocais para defender interesses particulares, as associações de magistrados permanecem caladas. Se são ágeis para garantir licenças-prêmio, remunerações acima de cem mil reais, e lutar para que não percam suas carreiras juízes que cometeram erros tão bárbaros quanto enviar uma adolescente de 16 anos para uma cela com mais de 30 homens, ninguém parece ter saído em defesa do juiz Lourenço. Ele deveria saber que não há crime pior do que discordar do Imperador.