A surpresa estratégica sofrida por Israel com o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 resultou no maior massacre de judeus em um único dia desde o Holocausto. É crucial, então, que aquele Estado investigue a falha de sua Comunidade de Inteligência (IC), não apenas para responsabilizar os culpados, como também para prevenir ataques futuros. Passado tanto tempo desde o episódio, muitas respostas já foram encontradas. Neste, e em outro artigo a ser publicado amanhã, irei demonstrar algumas dessas conclusões.
Os quatro ciclos de violência
Importante destacarmos que há um histórico recente de conflitos entre Hamas e Israel que resultaram em incursões militares no interior da Faixa de Gaza desde a saída unilateral de Israel daquele território.
Operação Chumbo Fundido (2008): Desencadeada por um aumento nos ataques de foguetes do Hamas contra Israel. A operação durou 3 semanas. O conflito resultou em um grande número de baixas palestinas, incluindo civis, e na destruição significativa de infraestruturas em Gaza. Apesar de Israel ter declarado vitória, o Hamas se recuperou rapidamente e continuou a representar uma ameaça significativa.
Operação Pilar de Defesa (2012): Em resposta a um novo aumento nos ataques de foguetes do Hamas, Israel empreendeu 1 semana de operações. Os alvos foram lançadores de foguetes, túneis e centros de comando. A operação resultou na morte de Ahmed Jabari, líder militar do Hamas, e na redução temporária dos ataques de foguetes.
Operação Margem Protetora (2014): Motivada pelo sequestro e assassinato de três adolescentes israelenses na Cisjordânia, foi o conflito mais longo até então: 50 dias. O conflito resultou em um grande número de baixas em ambos os lados e na destruição significativa de infraestruturas em Gaza.
Operação Guardião das Muralhas (2021): Desencadeada por confrontos entre palestinos e a polícia israelense em Jerusalém Oriental, durante o mês sagrado do Ramadã. Em 11 dias, o Hamas disparou mais de 4.000 foguetes, enquanto Israel realizou centenas de ataques aéreos. O conflito resultou em um grande número de baixas palestinas, incluindo civis, e na destruição de infraestruturas em Gaza.
A cobertura de inteligência de Gaza antes de 7 de outubro
Em 2017, foi publicado o relatório do Controlador do Estado de Israel sobre a Operação Margem Protetora (2014). Nele, foram reveladas falhas sistemáticas na cobertura de inteligência de Gaza por parte da IC israelense. O relatório identificou uma série de deficiências que contribuíram para a incapacidade de Israel em prever e prevenir o conflito, incluindo:
- Falta de cooperação entre o IMI e a ISA: As duas principais agências de inteligência de Israel, o IMI (Diretoria de Inteligência Militar) e a ISA (Agência de Segurança de Israel, também conhecida como Shin Bet), não compartilhavam informações de forma eficaz devido à rivalidade entre elas. Isso levou a uma compreensão fragmentada das capacidades e intenções do Hamas.
- Lacunas de inteligência: A IC israelense não tinha informações suficientes sobre a extensão da rede de túneis do Hamas, a localização de seus líderes e suas capacidades militares. A falta de HUMINT (inteligência obtida por fontes humanas) de qualidade, devido à dificuldade em recrutar e operar agentes dentro da Faixa de Gaza após a tomada do poder pelo Hamas em 2007, deixou Israel com uma visão limitada das atividades do grupo. A dependência excessiva em SIGINT (que se concentra na interceptação de sinais eletrônicos) deixou Israel vulnerável a um ataque planejado para evitar a detecção eletrônica, como foi o caso em 2023.
- Subestimação da ameaça dos túneis: A ameaça representada pelos túneis do Hamas, que poderiam ser utilizados para infiltrar terroristas em território israelense e realizar ataques surpresa, não foi priorizada pela IC israelense até 2015, após a Operação Margem Protetora. A falta de atenção a esse tipo de ameaça, que já havia sido utilizada pelo Hamas em conflitos anteriores, demonstra uma falha em aprender com as lições do passado e adaptar as estratégias de inteligência às novas realidades do conflito.
O relatório do Controlador do Estado ainda questionou por que a Faixa de Gaza não foi formalmente definida como um “estado-alvo” pela IC israelense, mesmo após a tomada do poder pelo Hamas em 2007. Essa falta de clareza na definição da ameaça pode ter contribuído para a subestimação do Hamas e a falha em dedicar recursos adequados para cobrir suas atividades.
A definição de um “estado-alvo” implica em uma série de medidas, como a intensificação da coleta de inteligência, o desenvolvimento de planos de contingência e a alocação de recursos específicos para lidar com a ameaça.
Sinais do 7 de outubro foram mal interpretados e ignorados
Semanas antes do ataque, um analista da Unidade 8200 – a unidade de inteligência de sinais de elite das IDF – elaborou um relatório detalhado que previa um ataque em larga escala do Hamas. O relatório, com cerca de 40 páginas e codinome “Muro de Jericó”, descrevia em detalhes o plano do Hamas, incluindo um exercício militar do Hamas transmitido pela mídia palestina.
Apesar da riqueza de detalhes e da gravidade das informações contidas no relatório, ele foi ignorado pelos altos escalões da IC israelense. A principal razão foi a descrença dos oficiais de inteligência na capacidade do Hamas de realizar um ataque tão sofisticado e em larga escala.
Na noite anterior ao ataque, a inteligência israelense detectou uma série de “sinais fracos” que, em retrospectiva, indicavam a iminência de uma ofensiva em larga escala do Hamas.
Sinais fracos são informações aparentemente aleatórias ou desconexas que, a princípio, parecem ser ruído de fundo, mas podem ser reconhecidas como um padrão significativo se conectadas a outras informações.
Esses sinais incluíam “conversas” suspeitas em canais de comunicação do Hamas, interceptadas pelo IMI, e movimentos incomuns de combatentes do Hamas perto da cerca de fronteira, observados pelos sistemas de vigilância israelenses. A desconsideração desses sinais pode ser atribuída a uma série de fatores:
- Viés de confirmação: A crença predominante na IC israelense era de que o Hamas estava dissuadido e focado na governança de Gaza.
- Subestimação do Hamas: A percepção do Hamas como um grupo terrorista “de baixo nível”, com capacidades limitadas de planejamento e execução de operações complexas.
- Falha de comunicação: A falta de comunicação eficaz entre as diferentes agências de inteligência israelenses, como o IMI e a ISA.
- Fadiga de alerta: A inteligência israelense detectou indícios de um ataque iminente do Hamas em agosto. Como o ataque não se concretizou naquele momento, o nível de alerta foi reduzido.
Fadiga e cegueira israelenses
Fadiga de alerta é um fenômeno comum em situações de ameaça persistente, em que a exposição constante a alertas e informações sobre possíveis ataques pode levar à dessensibilização e à dificuldade em discernir entre ameaças reais e falsas.
Já em abril de 2023, o departamento de inteligência do Comando Sul das Forças de Defesa de Israel (IDF) emitiu um alerta interno sobre uma possível infiltração do Hamas nos kibutzim (comunidades coletivas em Israel). Este alerta seguiu informações concretas recebidas sobre um ataque planejado pela organização terrorista.
Em agosto, semanas antes do ataque ocorrer, novas informações indicaram que um ataque era iminente. As IDF aumentaram o alerta. Quando nenhum ataque ocorreu em agosto, as IDF acreditaram que o ataque havia sido interrompido, apenas para descobrir mais tarde que isso fazia parte do plano de engano do Hamas.
O Hamas conseguiu “colocar Israel para dormir” durante seus preparativos de mais de um ano para o ataque terrorista.
A falha da IC israelense em prever o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 pode ser atribuída, em grande parte, a uma concepção errônea sobre as intenções do grupo. A avaliação predominante na IC era de que o Hamas estava dissuadido e não tinha interesse em romper o status quo, buscando consolidar seu poder em Gaza e melhorar a situação econômica da população.
Essa “cegueira” em relação às intenções do Hamas se deveu a uma série de fatores, como a permissão para que trabalhadores de Gaza entrassem em Israel para trabalhar, a entrada de ajuda humanitária em Gaza com a mediação do Catar (autorizada por Israel) e a relativa ausência de ataques de foguetes contra Israel nos anos anteriores ao ataque.
Essa avaliação foi reforçada pela estratégia de “gestão de conflitos” adotada pelo Estado de Israel em relação a Gaza. Em vez de buscar uma solução definitiva para o conflito, os formuladores de política israelenses se concentraram em apenas conter o Hamas. Seu foco estava nas tensões crescentes na Cisjordânia.
No entanto, essa avaliação ignorou os sinais de que o Hamas continuava a investir em seu aparato militar, a desenvolver novas tecnologias de combate e a planejar um ataque em larga escala contra Israel.
Conclusão parcial
O ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023 foi uma surpresa estratégica e tática para Israel, expondo falhas significativas nas capacidades de inteligência do país.
No texto de hoje, apresentei o histórico recente dos conflitos entre o Hamas e Israel; como o grupo, até então subestimado, evoluiu suas capacidades militares; e como ocorreu a maior falha de inteligência de Israel.
Baseado no artigo “Israeli Intelligence Was Caught Off Guard: The Hamas Attack on 7 October 2023—A Preliminary Analysis”, de Avner Barnea, publicado no International Journal of Intelligence and CounterIntelligence.
Avner Barnea é pesquisador do National Security Studies Center, Universidade de Haifa. Ele foi oficial da Agência de Segurança de Israel (Shin Bet).
Leia a segunda parte do artigo: Os ensinamentos após o ataque do 7 de outubro – Como o Hamas usou OSINT contra Israel – Danuzio