A tragédia anunciada que nós não queremos ver

Juliana Marins morreu ao cair de um precipício em um vulcão ativo. Não foi a erupção que a matou, foi a queda — silenciosa, brutal — no meio de uma paisagem hostil, onde cada passo exige mais do que vontade: exige preparo, sorte e estrutura. E estrutura é o que faltava. Não por culpa de um único governo, mas porque ali, naquela geografia crua, o socorro nunca viria com rapidez. Subir um vulcão não é como atravessar a rua. E pedir resgate num lugar assim não é como ligar para o Samu e esperar sirenes em quinze minutos. A demora no salvamento, que tantos apontaram com indignação, é real — mas era também previsível. O local onde Juliana caiu exige dois dias de viagem até que se chegue. A Indonésia não tem uma base de resgate em cada cratera. Esperar que helicópteros apareçam num passe de mágica é confundir a lógica do turismo com a lógica da sobrevivência. Quando você decide caminhar na borda de um vulcão ativo, você assume — ou deveria assumir — que o mundo real não funciona como um roteiro de aventura com final feliz. É cruel, mas é verdade: estava tudo errado desde o começo. Não se trata de culpar a vítima. Não se trata de absolvê-la. Trata-se de olhar a realidade de frente — e essa é a especialidade que menos se pratica hoje. Subir um vulcão ativo, mesmo fora de erupção, em uma região remota, sob condições instáveis, é uma escolha que carrega em si o risco. Ninguém escala a borda de um abismo esperando que ele não exista. Culpar o governo brasileiro, culpar a Indonésia, culpar o tempo de resgate, culpar Deus — é tudo uma tentativa de dar sentido a algo que dói e incomoda. Sim, o socorro demorou. Sim, o país não tem estrutura. Mas essa estrutura precária já existia antes da viagem. A natureza do lugar não mudou de repente. Ela sempre foi inóspita. Vivemos tempos em que toda dor exige um culpado. E o que era para ser uma conversa sobre escolhas e limites se torna uma vitrine de indignações seletivas. O nome de Juliana foi arrastado para o centro de um debate que não é sobre ela — é sobre política, sobre Lula, sobre prioridades. Porque Lula usou um avião da FAB para buscar uma aliada condenada por corrupção, e não moveu o mesmo esforço para resgatar uma jovem caída no meio de um vulcão. Sim, isso está errado. Está profundamente errado. Mas isso não torna o Estado brasileiro responsável pelo translado de corpos de brasileiros mortos no exterior. Não há estrutura para isso — e, mais ainda, não deveria haver. Não por crueldade, mas por realidade. O governo não pode, nem deve, prometer onipresença. A vida moderna nos convenceu de que tudo é acessível, tudo é seguro, tudo tem solução em tempo real. Mas essa é uma ilusão, cara. O SAMU não atende no Himalaia. O 192 não chega em uma ilha do Pacífico. E o botão de pânico das redes sociais não aciona helicópteros. Quando se escolhe o risco, o risco real, é preciso ter consciência de que as consequências também serão reais. Turismo de aventura é, por definição, aventura. E aventura é incerteza. Escalar, atravessar, desafiar — tudo isso pode parecer poético no feed, mas tem um custo. Escorregar num precipício, perder o caminho, sofrer um acidente — isso não é azar, é possibilidade. E quando isso acontece a 2 mil metros de altura, no coração de um vulcão ativo, a ajuda virá — se vier — tarde demais. A morte de Juliana é profundamente triste. Mas tristeza não pode ser argumento para negar os fatos. Não se morre impunemente no meio da natureza selvagem. A selva, o gelo, a lava, o abismo — todos são soberanos. E o ser humano, por mais que se sinta eterno, ainda é só carne. Carne frágil. Desde sempre, desafiamos os limites da vida. Entramos em cavernas, subimos montanhas, mergulhamos nas fossas mais profundas do oceano. É nosso instinto. Há algo de belo nisso, sim. Mas há algo de perigoso também. O que não se pode fazer é ignorar que, às vezes, a morte responde. Juliana Marins não morreu por um erro único. Foi uma soma de fatores. Foi a decisão de escalar. Foi o terreno difícil. Foi a queda. Foi a demora. Foi tudo isso. E, ainda assim, transformar essa tragédia numa pauta para atacar ou defender políticos é diminuir a morte dela a uma utilidade qualquer. O turismo radical em locais extremos virou moda. Um fetiche moderno. Queremos encontrar sentido na beira do abismo. Testar os próprios limites. Registrar a superação. Mas a verdade é que, às vezes, não se volta. Às vezes, o abismo não perdoa. E isso não é culpa de ninguém. Ou é culpa de todos. O luto dos que ficaram é legítimo. A indignação, também. Mas o que se espera da morte de alguém como Juliana não é um culpado — é um espelho. Para que se veja, com clareza brutal, que liberdade inclui o direito de escolher. E que escolher o risco é escolher também a possibilidade de não voltar. Não foi só azar, nem apenas fatalidade — tropeçar e cair é fatalidade, sim, mas acontece especialmente quando se está no precipício de um vulcão ativo. Juliana fez uma escolha arriscada, e foi nessa combinação de decisão e circunstância que o fatal se concretizou. O que fica depois do silêncio e das manchetes não é um mistério existencial, mas uma constatação simples e dura: certas decisões colocam você num lugar onde o erro pode ser fatal. E nenhuma narrativa vai amenizar essa verdade. Juliana Moreira Leite é escritora e jornalista, autora do livro Eu Não Pedi por Nada Disso. Com uma escrita afiada e direta, aborda política, cultura, sociedade, atualidades e fala a verdade que ninguém ousa dizer. É cronista e colunista engajada, conectada com seu público pelo Instagram @juliemilk e pelo canal Chuchu com Caviar no YouTube